Deckard - Histórias de outro mundo - Capítulo 17
Foi estranho para Deckard, ter um pesadelo depois de tanto tempo, afinal ele estava sempre cansado demais para se importar com sonhos.
Mas esse lhe pareceu inevitável. Ele estava em meio à toda aquela tempestade outra vez, mas ao invés de ouvir apenas os sons do ambiente e da tempestade, ele ouvia algo mais.
— D… Dout…. — Deckard foi surpreendido, ao ser chamado por um título que já não lhe servia de nada.
Começou a olhar em volta e percebeu que não estava no lago, mas estava na caverna. Aquela mesma que deu início a tudo. Mas ela não estava mais como antes.
A caverna era um amontoado de escombros e Mariah o chamava do túnel, ele podia reconhecer a voz e o desespero nela, maior do que o de costume.
— Calma Sr. Mariah, por favor mantenha a calma — César pedia, enquanto sua voz carregava preocupação.
— CHEGUEI, SENHOR CÉSAR — Deckard pôde ouvir Carl gritando.
Parecia surreal que o túnel estivesse intacto, considerando o estado da caverna. Mas, estava e também havia um pequeno espaço sem escombros.
Carl andou até lá com cuidado, experiente que era, até que parou e virou a luz da lanterna em direção à Deckard. Seus olhos se arregalaram e ele derrubou a lanterna, enquanto o encarava, preso em meio ao metal e a tempestade violenta.
— Eu já vou, Doutor — Apesar de estar bem perto agora, Deckard quase não o ouvia.
— Não venha Carl — Ele tentou falar e mandar Carl se afastar, mas ele continuou em frente até chegar perto de Deckard.
Assim que Carl se aproximou dele, a tempestade cresceu, os relâmpagos aumentaram e um novo relâmpago caiu dos céus e os dois foram eletrocutados.
Enquanto o sonho escurecia, Deckard pôde ouvir os gritos de Carl, enquanto ele era eletrocutado até a morte.
Deckard acordou de sobressalto, assustado outra vez. Fazia um tempo que não acordava dessa maneira.
— E eu achando que essa fase já havia passado — reclamou, enquanto se pegava pensando em seus antigos companheiros de trabalho e o que havia acontecido com todos, como estariam.
— Bem, por mais que eu me preocupe, não posso fazer muito estando aqui — constatou, se sentindo triste por isso.
Ele olhou para a janela e percebeu que já devia ser cerca de 5h da manhã, pois ainda nem haviam indícios dos primeiros raios de sol.
— Nem mesmo o horário mudou — reparou, ainda incomodado com o pesadelo.
Levantou e arrumou as coisas da cama. Não podia responder à gentileza de Diane deixando uma bagunça para trás.
Apesar da curiosidade, ele conseguiu conter a vontade de olhar em volta no quarto e tentar descobrir algo sobre ela. Seguiu em direção à sala e se deparou com ela colocando uma panela no fogo.
— Dormiu bem? — Diane perguntou antes mesmo dele se aproximar e sem mesmo o olhar.
— Não sei como você consegue fazer isso. Mas, sim. Apenas tive um pesadelo idiota.
Ele realmente não sabia quão bons eram os sentidos dela ou o quanto ela havia lutado em sua vida, pois ela era capaz de ouvir até o menor dos sussurros no vento.
— Não é minha culpa o fato de você ser silencioso como um terremoto.
Ela lhe deu um sorriso por cima do ombro, enquanto mexia na panela sem parar.
— Sente-se, hoje teremos um caldo no café, afinal está um pouco mais frio.
Deckard não demorou a se sentar e logo começaram a conversar sobre a nova rotina de treinamento.
— Falando sobre treinamento, hoje vamos adaptar um pouco seus estudos noturnos Deckard. Vamos acrescentar alguns estudos de etiqueta, gastronomia e primeiros socorros e, como você já está aprendendo bem sobre geografia e as sociedades, vamos diminuir um pouco da carga dessas matérias e implementar as diferentes artes de guerra.
— Artes de guerra? — ele realmente não fazia ideia do que isso queria dizer.
— Sim. Nas academias, os jovens aprendem sobre o mundo e sobre a guerra. Estratégias, artes marciais, magias de guerra, infiltração, espionagem, furtividade, formações de batalha e tudo o mais. Vamos te tornar um verdadeiro mago de batalha, Deckard.
— Vocês têm umas matérias bem incomuns por aqui, hein — ele respondeu, sem esconder a surpresa.
— Mesmo quando não há guerras por aqui, a lei do mais forte impera. A sociedade é baseada em poder, seja ele de batalha ou dinheiro e influência. E a única maneira de você ter respeito e uma boa vida por aqui, é aprendendo sobre isso e se tornando uma força a ser respeitada e temida.
Depois de colocar um pouco de caldo em cada tigela e lhe passar um pedaço de pão, Diane foi em direção ao quartinho de estudos do fundo. Poucos minutos depois, ela voltou com alguns livros grossos e entregou eles para Deckard.
— Aqui — ela lhe entregou um em mãos e colocou os outros sobre a mesa. — Você vai perceber que eles serão muito úteis para você bem antes do que imagina.
Ele olhou para o livro em suas mãos. Assim como os da mesa, ele tinha uma capa grossa de couro, folhas e lombada bem desgastadas. Eram sobre príncipios de guerras, armas e armaduras, estratégias, história de guerras e um sobre monstros e bestas.
— E sobre aquele evento que eu disse que estava te preparando. Em um ano, vou te levar ao centro do continente, para participar de um torneio.
— Vocês têm até torneios por aqui. Qual vai ser o prêmio?
— Dinheiro, fama e uma vaga para uma academia de batalha, onde só a nobreza e os melhores podem estar.
Ele não esperava que fosse ter que estudar tão cedo outra vez.
— Agora, vamos lá. Preciso te avaliar e fazer algumas alterações no seu treinamento.
Enquanto ia em direção à porta, ela jogou um casaco de peles para Deckard, enquanto colocava o seu próprio.
Isso fez ele se perguntar quão frio poderia estar lá fora. Colocou o casaco e foi para fora, só para parar bruscamente na saída e arregalar os olhos de espanto.
— Um frio de congelar o inferno — murmurou, assombrado com a mudança brusca de temperatura.
— É bom se acostumar com esse frio. Enquanto aqueles dois estiverem aqui, a temperatura não vai mudar tão cedo — Diane apontava em direção à muralha rochosa que ocupava um dos lados da floresta.
Com alguma dificuldade, ele forçou a vista e olhou. Seu coração quase pulou do peito com o que eu viu.
— Ótimo. Realmente ótimo. Nossos novos vizinhos são dragões.
Diane seguiu em frente, exprimindo um leve sorriso. E foi adentrando a floresta, na direção contrária aos dragões.
Depois de uns bons 2 ou 3 quilômetros, chegaram a uma clareira que Deckard ainda não conhecia.
— Antes de começar, vamos montar uma fogueira — ela já estava juntando alguns galhos secos.
Antes mesmo que ela lhe pedisse, ele começou a limpar um círculo no meio da clareira e fazer um círculo com algumas pedras.
Assim que terminaram de acender a fogueira, Argenti se deitou preguiçosamente ao lado do fogo.
— Achei que ele iria sair para caçar hoje também.
— Bem, se fosse um dia normal, sim. Mas com predadores maiores por aqui, ele não vai se arriscar por aí.
— Então os dragões são predadores dos lobos.
— Não é exatamente assim — Diane o corrigiu. — Eles caçam outras bestas poderosas e costumam evitar as mais fracas. Dessa forma eles se mantêm sempre poderosos e como o topo da cadeia alimentar de onde reinam, mas sem devastar a fauna.
— Faz sentido. Eles se alimentam e eliminam a concorrência.
— É por aí — ela começou a revirar sua mochila enquanto mudava de assunto. — Agora, tira seu casaco e vamos treinar.
— Tirar meu casaco, com esse frio é meio cruel — ele fez um muxoxo e resmungou.
— Deixe de ser fraco, Deckard. Eu vou te mostrar que a mana pode ser usadas de formas ainda mais versáteis, como para se aquecer no frio, ou diminuir o calor no deserto.
Ela se sentou e começou a explicação de como fazer. No fim acabou não sendo tão diferente de controlar a mana.
Após aprender isso, ele voltou à sua tarefa infernal de completar a meta diária de exercícios. Apesar de tudo, ele estava sentindo muito mais facilidade para fazer, mas achou que era coisa de sua mente.
Após cerca de uma hora e meia, ele conseguiu terminar os exercícios diários pela primeira vez em dias.
— Talvez não fosse coisa da minha mente — ele percebeu, com um leve espanto.
Ele realmente havia terminado e não estava tão exausto quanto imaginou que estaria. A mudança de atributos estava começando a dar sinais de que ia facilitar a vida de Deckard.
Depois de terminar os exercícios, ele passou para o treino de combate e foi realizando as sequências de poses.
Seguiu com o treinamento até a hora do almoço. E diferente do que pensou, Diane só observou, sem interferir uma vez sequer, apenas fazendo comentários para arrumar uma pose ou outra.
— Hora do almoço, Deckard. Vamos lá, quero ver sua evolução na caçada.
Ele foi até onde estavam as coisas deles e pegou o cantil e jogou um pouco de água no rosto. Colocou sua adaga na cintura e sua capa nos ombros. O tecido surrado e manchado ajudava a se camuflar em alguns arbustos secos que haviam onde os animais tomavam água.
Conforme se aproximavam da água, ele percebia que havia menos animais menores e menos marcas de pegadas do que o normal.
— Cuidado Deckard. Parece que outros animais maiores começaram a vir pra cá, por conta dos dragões glaciais. Você pode acabar encontrando animais maiores do que os javalis que está acostumado a caçar.
Deckard foi se aproximando do olho d’água com calma, com a adaga pronta e com os sentidos trabalhando dobrado, para captar o menor dos sinais de perigo. Seguiu pelo meio dos arbustos, para a parte mais cheia de árvores, para ter uma vantagem de terreno e chegar mais furtivamente. Depois de andar um pouco, ele começou a estranhar a falta de barulho, o silêncio estava se tornando ensurdecedor.
Enquanto procurava alguma presa, tudo que conseguiu ver foi um javali que parecia estar morto. Decidiu se aproximar para ver melhor e, caso ele não estivesse devorado, iria aproveitar a boa sorte para facilitar seu almoço.
Quando chegou perto, pôde ver que ele realmente estava morto e, para sua sorte, não estava com sinais de que algum animal havia começado a devorar.
— Hoje é meu dia de sorte. Vou almoçar sem precisar lutar antes.
Ele se abaixou entre o javali e o olho d’água, para abastecer o seu cantil e aproveitou para guardar o javali no seu inventário.
Enquanto tampava o cantil e o prendia ao meu cinto, ouviu um leve farfalhar de folhas atrás de si. Mas, antes que ele pudesse ter tempo de sacar a adaga e virar, viu um enorme borrão vermelho se aproximando, com uma velocidade tão grande que mal pôde acompanhar.
— Prisão das Heras — Deckard nunca ficou tão feliz por ouvir a voz de Diane em todo o tempo que estava nesse mundo.
No último segundo, o animal vermelho ficou preso no lugar, enrolado em plantas que quase não deixavam nada dele para fora.
— Ah, Meu Deus. O que diabos foi isso? – ele foi se arrastando até quase cair na água. O coração tão acelerado que quase estava parando.
— Isso era a morte — Diane fez com que as plantas desenrolassem um pouco e ele se viu encarando um tigre rubro como sangue, com listras brancas ao redor do corpo, cara a cara. A coisa mais aterradora e mais bela que ele já havia visto em toda a sua vida.
Ele tinha o tamanho de um boi praticamente, com um pêlo lustroso, caninos tão grandes quanto a adaga de Deckard e uma ferocidade no olhar, que deveria apavorar até o homem mais corajoso.
— A função de caçar para o almoço é sua, então cabe a você matá-lo Deckard. Acerte ele com força, para matar em apenas um golpe, afinal feri-lo vai deixar ele furioso.
— Que animal é esse? — Deckard ignorou o aviso dela e perguntou, sem nem tentar esconder o deslumbramento no olhar.
— Sanguinarius tigris — Diane lhe respondeu, apesar de o olhar com uma expressão estranha.
— Tigre Sanguinário — ele repetiu. — Algo me diz que o nome não se deve à cor dele.
— Bem, acredito que por experiência própria, você pode ver que ele não é exatamente um animal dócil.
— Posso fazer um contrato com ele, assim como você e o Argenti?
— Não era exatamente o que eu esperava você pedir, mas pode sim. Se você aguentar passar pelo processo.
— Bem, eu gostaria muito de tentar.
Nesse momento, Deckard parecia uma criança frente ao presente de Natal, com o qual sonhou a vida toda.
— Vai ser doloroso, ainda mais com um animal selvagem.
Diane se sentou num tronco e começou a riscar o chão com o dedo.
— Pra você fazer um contrato Deckard, geralmente você cria o animal e cria um laço com ele, assim pode fazer isso mais fácil ou compra um já domesticado, o que pode ser absurdamente caro. Já com animais selvagens, esse processo é meio forçado. Você terá que lutar com ele, até esgotar as forças dele ou até ele reconhecer seu poder e, como não temos um mago versado em contratos, vamos ter que fazer uma ligação de sangue. Isso vai ser muito doloroso e só poderá ser desfeito com a morte de um de vocês.
— Eu estou disposto a correr o risco, Diane — Deckard encarou ela, sem demonstrar um pingo de incerteza.
— Bem, boa sorte então, você realmente vai precisar.