Guerra, o Legado no Sangue - Capítulo 24
Na cauda do comboio de carroças daqueles que buscavam retornar à cidade do Rio de Janeiro, a luta contra o enorme monstro continuava. A única vantagem que tinham sobre o monstro eram seus números.
Apesar de quase sem movimento nas pernas traseiras, a criatura continuou sua investida em direção ao grupo. O chão tremia e a lama voava em todas as direções a cada passo.
— Aquela coisa ainda consegue se mexer!? — gritou em espanto o fuzileiro que os acompanhava.
O capoeirista continuava na lateral da criatura, esperando outra oportunidade para atacar. Qualquer movimento errado seria fatal, mas ainda estava confiante de que conseguiria lidar com a situação.
O monstro, porém, já tinha entendido qual era a estratégia deles. Roubavam sua atenção com as flechas, enquanto miravam suas pernas simultaneamente. As árvores serviam como proteção para Aren, limitando o movimento e atrasando um contra-ataque. Já o restante estava longe o suficiente para não estar em perigo de ser acertado de volta.
Seus instintos lhe diziam para recuar, mas as ordens que martelavam em sua mente, obrigando a destruir tudo em sua frente, não permitiriam isso. Só restava uma opção: ir com tudo de uma única vez.
ROOOOOOOAR.
O gigante rugiu, quebrando a cacofonia da chuva. Talvez, se houvesse alguém vivo na floresta, sem conhecimento da situação que se desenrolava nessa estrada, confundiria esse grito de guerra com o barulho de um trovão na tempestade.
— Tem mais deles vindo.
Como se tivessem sido invocados para ajudar, os vampiros inferiores começaram a sair da mata, se revelando como bandidos que esperam a hora exata de pular em uma vítima.
A vantagem numérica agora não era mais do grupo.
— Puta… merda. — Com tantos inimigos do outro lado, e tão poucos deles desse, o fuzileiro já não sabia o que fazer para garantir aquela posição.
Não importava a qualidade ou reconhecimento do preparo militar nesse momento. Soldado nenhum no mundo foi treinado para esse tipo de situação. Sem um superior para elaborar um plano adequado, eles seriam obrigados a recuar.
— Vamos recuar! — gritou o marinheiro. Agora que a situação parecia sem solução, buscou o fuzileiro responsável pela carroça da frente. Em meio a chuva, conseguiu ver seu contorno: estava brigando, sozinho, contra um grupo de vampiros.
Depois que mandaram os passageiros com eles irem para a carruagem logo na frente, aquele ponto da fileira se tornou um ponto fraco na linha defensiva. Uma dezena de pessoas do lado de fora da carroça eram praticamente um alvo marcado, e um prato irrecusável para aquelas criaturas.
— Não!! Se a gente sair daqui sem derrubar essa coisa, aquelas pessoas todas vão morrer sem conseguir reagir — respondeu Aren. Ele tinha lutado no quilombo por tempo suficiente para saber o que iria acontecer caso falhassem ali.
Normalmente o capoeirista não colocaria a mão no fogo para ajudar alguém. Muito menos pessoas desconhecidas. Entretanto, aqui estava ele agora.
Talvez o que aconteceu em sua casa tenha o afetado mais do que esperava. Não foi só seu pai, o antigo líder, que morreu. Seus amigos de infância e todo o restante da família também pereceram.
Entretanto, a ferida que mais ardia, o gosto mais amargo em sua língua, era a morte de seu sobrinho. Uma criança que tinha uma vida inteira pela frente, foi massacrada e devorada viva sem piedade nenhuma. Isso tudo bem na frente dele.
Aquele garotinho assustado na carroça, aquele que torceu por ele antes, lembrava muito seu sobrinho. Aren sentia uma sensação estranha no peito, parecia uma obrigação tentar salvar aquela vida… Talvez assim poderia compensar a morte que não conseguiu impedir.
O homem perfurou um dos vampiros que se aproximou, cravando a lança bem no meio do peito. Deslizou o cabo pelas mãos e se aproximou da criatura presa na arma. Com um pontapé, enviou o monstro para longe, arrancando a lâmina presa em sua carne.
Uma dezena de vampiros se juntaram ao confronto, a maioria ao redor de Aren. O monstro sabia que a única coisa impedindo um avanço total do gigante eram seus ataques com a lança.
— Anahí, eu preciso segurar o grandão!
— Acerta os da direita! — Anahí gritou para o militar. — Eu fico com os da esquerda.
Sem ter para onde correr ou outra opção, o fuzileiro obedeceu ao que lhe foi dito. Com o fuzil Kropastchek, já totalmente municiado, buscou as feras que assediavam o capoeirista.
Cada disparo foi feito no limite. Precisava derrubar eles antes que chegassem a Aren e sem errar muitos disparos, pois a munição já estava no fim.
De um lado, os vampiros eram atingidos por flechas precisas, que matavam ou atrasavam consideravelmente os monstros; do outro, os disparos faziam o trabalho.
Sem precisar se preocupar, pelo menos por esse momento, com os vampiros menores, Aren focou novamente no colosso. A criatura já tinha avançado vários metros e não havia mais muito espaço entre ele e a carroça. Com a lança, perfurou superficialmente diversas partes da criatura, atrasando seus movimentos.
Ele conseguia enfrentar o monstro devido a sua agilidade, reflexos e ao comprimento da lança, mas o mesmo não poderia ser dito do restante do grupo. Precisava dar um jeito de parar totalmente o gigante, mesmo que só por um tempo, para que Anahí, Sophia e o fuzileiro pudessem recuar para mais longe.
O fuzileiro logo precisaria recarregar, enquanto Anahí provavelmente não teria flechas suficientes para segurar todos os vampiros ao redor. Aren precisava fazer algo, e tinha que ser logo.
“Parar essa coisa, lidar com os vampiros e depois voltar para matar ele. Como que eu faço isso sem morrer no processo?!”
— Foi meu último disparo — gritou o fuzileiro. — Preciso pôr mais munição!
O tempo para pensar havia terminado, e Aren só tinha pensado em um plano viável.
— É tudo ou nada… Loirinha, amarra uma das patas dele!
Sophia, que estava esperando o momento certo até agora, não demorou para cumprir a tarefa. Sentiu a energia fluir da ponta dos dedos, avançando pelo ar e se enrolando em algumas árvores.
O homem de dreads parou seus ataques contra a criatura e pulou na sua frente. O monstro não esperou um segundo sequer antes de atacar, movendo seu braço enorme em direção ao homem. As garras na ponta de cada dedo eram tão grandes quanto a ponta da lança do próprio Aren.
Os fios, invisíveis para todas as outras pessoas, saltou dos troncos e galhos, prendendo firmemente a garra da criatura. O monstro parecia enxergar os fios que o agarravam, fazendo força para finalizar o movimento e cortar o humano irritante na frente dele.
Para o capoeirista, o braço da criatura estava completamente parado no meio do ar. Sem perder mais tempo, avançou com seu corpo inteiro, enfiando a lança na pata erguida do monstro.
A criatura rugiu de dor, ainda com o membro imóvel. Suas pernas traseiras estavam destruídas demais para aguentar sozinhas o peso do corpo, então sua outra pata dianteira não poderia deixar o solo para cortar Aren.
Sophia sentia como se estivessem puxando uma parte de seu próprio corpo. A força descomunal do monstro, os fios tensionados ao limite e as árvores se contorcendo do outro lado. — Eu não consigo segurar muito mais!
Graças a mineira, o capoeirista tinha concluído a primeira parte do plano. Faltava agora a segunda parte! Com ambos os pés afastados um do outro, avançou para o lado, girando o corpo no processo e saltando. Em meio ao giro no ar, usou toda a energia acumulada para chutar a base da lança.
Com o movimento de martelo rodado, literalmente martelou a base da lança na carne da criatura. A lâmina rasgou tudo no caminho, e quase metade da lança atravessou pelo outro lado.
Um rugido ainda maior de dor ecoou, e então os fios da menina loira se desfizeram.
Com um mortal para trás, o homem de dreads se afastou rapidamente do colosso.
A criatura agora estava solta das amarras, mas continuava sem poder se mover. A lança de metal transpassada na pata dianteira impedia que a criatura conseguisse colocar aquele membro no chão.
O monstro se debateu, atacando o chão com o membro ferido pela arma. Tentava se livrar da lança de todas as formas. O capoeirista sabia que não seria fácil para o monstro se livrar daquele pedaço de metal, mas era apenas uma questão de tempo.
Um dos vampiros saltou com ferocidade na direção de Aren, que agora estava sem sua arma. Uma presa fácil, a criatura pensava.
Não poderia estar mais enganada.
Com um chute circular direto na mandíbula da fera, o vampiro teve o pescoço torcido e completamente destruído com o impacto, caindo sem vida na sujeira da estrada.
Mesmo sem a lança em mãos, os anos de capoeira transformaram o próprio corpo de Aren em uma arma. Isso que realmente significava ser um artista marcial.
— Aproveita a brecha pra matar os menores! — gritou aos companheiros mais atrás. Com o mesmo martelo rodado que usou para enfiar a lança na carne do colosso, arremessou mais um vampiro para longe.
Mesmo com as flechas ocasionais de Anahí, Aren continuava cercado pelas criaturas nefastas. Bastava um movimento em falso, como ser atingido pelas costas ou escorregar na lama, e seria completamente sobrepujado pelos monstros e seus números.
O capoeirista manteve o gingado, controlando o espaço entre ele e as feras. Elas olhavam com expectativa, obviamente queriam rasgar sua carne e devorá-lo por inteiro, mas ainda se continham. Rodeavam o homem, como hienas ou lobos esperando o momento ideal para dar o bote em uma presa.
O colosso rugiu para os céus e um raio rasgou o céu escurecido em meio a tempestade, seguindo a ordem, os vampiros menores iniciaram seu ataque.
Dois de uma vez, saltaram quase ao mesmo tempo na direção do homem de dreads. Quando estavam na melhor posição, Aren contra-atacou com um martelo bicicleta perfeitamente executado, uma sequência muito rápida de dois chutes frontais.
Os focinhos das criaturas se quebraram, enquanto elas rolavam para trás com os pescoços torcidos em posições estranhas.
— Atrás! — gritou Sophia. Enquanto sua voz alcançava os ouvidos do lutador, os fios de pura energia se amarraram nas pernas do vampiro que tentou um ataque no ponto cego.
Com o ímpeto interrompido, o monstro se espatifou com a cara no chão, engolindo lama e quebrando alguns dentes no processo.
O capoeirista girou no próprio eixo, ficando de frente para a criatura que havia tentado pular em suas costas. Com um pisão, torceu o pescoço da fera.
Esperou um instante para recuperar o folego perdido nos últimos golpes, mas não tardou em agradecer: — Valeu, loirinha.
— Pronto! — gritou o fuzileiro. — Mas só tenho mais quatro disparos. A munição acabou!
— Eu só tenho mais duas flechas.
Com a informação que os demais compartilharam, restava decidir o que fariam para terminar essa luta. “Mais cinco vampiros, além do grandão.”
O colosso já estava quase arrancando a lança de sua carne, atingindo o solo como uma marreta, forçando a arma a sair pela parte de cima.
— Guarda pelo menos uma bala praquela coisa! Sophia, espera até o meu sinal.
O fuzileiro poderia imaginar o motivo para guardar um disparo. Até mesmo animais grandes como bois e jacarés morreriam com um único disparo no lugar certo.
O que o militar não entendia era a função da garota de vestido. Até agora ela não tinha feito nada, já que, aos olhos dele, o monstro maior e o vampiro pararam de se mover sem explicação nenhuma. Aren e Anahí sabiam dos fios, mas não os viam; o fuzileiro não os via nem sabia deles.
Contudo, o homem negro posicionado entre eles o o monstro maior estava provando através de suas ações que era uma pessoa confiável. Se o plano envolvia guardar pelo menos um projétil, era isso que o fuzileiro faria.
ROOOOOOOAR.
O colosso rugiu. E os vampiros ao redor imediatamente mudaram de alvo, disparando na direção da carroça.
Anahí enviou a primeira flecha, acertando bem no meio da cara do vampiro que vinha na dianteira. Ele caiu e rolou para frente, derrubando outra criatura que vinha logo atrás.
O militar escolheu o alvo mais fácil, o monstro que tropeçou no primeiro a cair, e atirou. Com uma morte quase instantânea, agora já eram dois a menos.
Os três restantes se dividiram em um ataque coordenado, um foi em direção a Anahí, outro em direção a Sophia e o último para o fuzileiro.
A corda do arco foi puxada outra vez. Quando a ponta da flecha se alinhou com a criatura que corria diretamente para ela, Anahí a soltou.
Com a boca aberta rosnando qualquer coisa incompreensível, o vampirou teve o azar de ter a garganta atingida por dentro. A flecha fluiu sem impedimentos e transpassou o pescoço do monstro.
Engasgando-se com o próprio sangue, esse vampiro já não era mais uma ameaça. Entretanto, ainda restavam mais dois.
O fuzileiro analisou os últimos dois e depois olhou para a indígena. Ela não tinha mais flechas, então era obrigação dele derrubar o vampiro que corria em direção a Sophia.
Vencendo a pressão de focar a atenção em um alvo diferente daquele que corre na sua direção, o militar disparou. Auxiliado pelo fato dos vampiros correrem sempre em linha reta sem qualquer cuidado, o projétil atingiu em cheio o crânio do monstro.
Agora restava o último. Apontou rapidamente a arma para o novo alvo — perto o suficiente para que seu cheiro de sangue e carniça pudesse ser sentido.
Sem pensar muito, pressionou o gatilho.
E errou o tiro.
— Merda.
Pouco antes de atirar, a criatura deu um salto para o lado, algo que elas nunca tinham feito até então.
Instintivamente, o militar começou a pressionar o gatilho outra vez. Mas um fato causou um choque que percorreu seu corpo inteiro e o impediu de continuar: seria o último disparo.
Eles precisavam guardar pelo menos o último tiro para o monstro maior.
E então o vampiro saltou. Ignorando seu treinamento, largou a arma e chutou a criatura no meio do pulo.
Ambos caíram para trás, mas o fuzileiro foi mais rápido em se erguer. Ignorando sua carabina na lama, lançou-se sobre o monstro. Com as duas mãos, agarrou o pescoço pálido da criatura e apertou com todas as forças que tinha.
O vampiro gemeu e atacou, cravando suas garras nos braços do homem. Cortes profundos escorriam sangue o suficiente para que todo seu braço ficasse tingido de vermelho.
Após segundos que pareceram horas, o monstro finalmente perdeu as forças e parou de lutar pela vida, desfalecendo imóvel entre lama e sangue.
O militar respirava com pressa, quase entrando em pânico pela situação. Até que uma mão gentil apareceu diante de seu rosto.
— Você fez bem — Anahí disse, o ajudando a se levantar. — Mas ainda precisamos de você pra terminar.
O homem se recompôs e pegou a arma do chão. Assentiu com a cabeça e conferiu a munição, o último disparo continuava lá.
Durante a investida final, Aren não ficou parado. Pouco a pouco, recuou para perto dos demais. Com o fôlego ainda prejudicado, avisou: — Lá vem ele.
O colosso finalmente havia arrancado a lança que impedia seu movimento. Agora o grupo estava sem flechas, sem a lança e com um único disparo para fazer.
— É agora!? — gritou o militar, erguendo a arma na direção do monstro.
— Não! — Aren botou a mão sobre os braços do homem, forçando-o a abaixar a carabina. — Ele vai chegar perto, e então cê atira por dentro da boca dele.
A criatura se arrastava na direção dos quatro, seus dentes enormes expostos enquanto rosnava para eles. O militar pensou em virar de costas e fugir, mas então isso tudo teria sido em vão.
— Quando ele chegar bem perto, vai ficar parado igual da outra vez. — Aren disse ao homem, depois olhou para a loira por um instante. — Tudo certo, Sophia?
A mineira engoliu em seco. Já estava exausta depois da primeira vez, não aguentaria muito tempo, mas era sua obrigação. Aquelas pessoas, principalmente Anahí, tinham a ajudado mais do que ela poderia pagar de volta.
— Sim — respondeu, se obrigando a ter mais confiança através das próprias palavras. Por um momento, lembrou do próprio pai. Ele vivia dizendo que “as palavras tem poder”.
Sophia abriu os braços, fechou os olhos e inspirou com calma.
— Agora!
Ao abri-los novamente, a criatura estava a apenas um metro e meio deles. Sua boca enorme se mostrava pronta para devorá-los de uma única vez.
Da ponta de cada um de seus dedos, os fios avançaram em direção às pernas dianteiras da criatura. Sentia que não tinha mais muita energia sobrando, então resolveu usar um método mais inteligente.
Envolveu as pernas dianteiras da criatura e entrelaçou uma a outra, usando da própria resistência e força do alvo para imobilizá-lo. O colosso tombou com força e lama voou para todas as direções.
O fuzileiro ficou imobilizado. De repente, a criatura tropeçou e caiu bem diante deles. Suas calças já estavam molhadas da chuva há muito tempo, mas o calor repentino que escorreu pelas suas pernas deixou claro o que acabou de acontecer.
— Mata essa coisa logo, caralho! — Aren gritou.
O militar piscou várias vezes, processando os fatos.
— Ah, sim. Sim!
ROOOOOOOAR.
Enquanto o monstro rugia, talvez chamando mais reforços. O fuzileiro alojou o cano da arma entre os dentes do monstro, pressionando a ponta contra o céu da boca da criatura.
BANG!
Massa encefálica jorrou por trás do crânio do monstro, que soltou um fraco gemido enquanto caia.
O militar se deixou cair ao chão, exausto física e mentalmente. — Finalmente… finalmente essa coisa morreu.
Aren deu alguns chutes no corpo do monstro, apenas para ter certeza que estava morto mesmo. Pousou seus olhos para o grande cristal vermelho alojado no peito da fera e um pensamento passou pela sua cabeça.
Depois foi atrás de sua lança, que, para seu infortúnio, estava completamente amassada. Era bem improvável que ela fosse útil em combate outra vez. Então apenas a deixou ali.
— Saravá… — clamou em voz baixa.
— Ah, que cansaço. — Sophia reclamou, se sentando na beira da carroça. — Eu preciso de um banho e de uma roupa limpa!
Anahí se sentou ao lado dela, também era visível seu cansaço. — Essa situação me deu fome.
Aren olhou ao redor e pegou uma pequena faca. Em seguida, se abaixou e começou a separar a pedra vermelha do resto da carne da criatura que eles recém haviam eliminado.
— Falando em comida, eu conheço um lugar legal na capital — disse para indígena, sem se importar em falar isso enquanto cortava o corpo do monstro. — Depois te levo lá, se cê quiser.
— Que nojo… — reclamou Sophia, virando o rosto para o outro lado. — Pra que isso aí?!
— Esse cristal vermelho parece uma pedra preciosa — respondeu Aren. — Vale a pena tentar vender.
Enquanto os três interagiam, com uma calma inesperada dada a situação em que estavam há poucos minutos, o fuzileiro continuava prestando atenção aos arredores.
— Não tem mais nenhum perto daqui — Anahí comentou casualmente.
Ouvindo isso, o militar decidiu finalmente relaxar um pouco. — Obrigado pela ajuda. Se vocês não estivessem aqui…
— Ocê foi bem também. Né, Aren?
— Pode ser — resmungou. — Pra um militar, tá até bom.
O homem soltou uma tosse falsa e continuou falando: — Pela urgência, acabei não me apresentando antes. Sou o Cabo Telles, mas vocês podem me chamar só de Leo.
Sophia devolveu a gentileza e apresentou o grupo, incluindo também Arthur e Lucas. Ao fazer isso, sentiu um pouco de nervosismos. “Como será que o Arthur tá agora?…”
— Por sinal, o que foi aquilo? Essa coisa parou do nada! — questionou o militar. — Vocês por acaso…
Krac!
Sons de ossos quebrando e carne sendo esticada calaram o fuzileiro. Quando Aren terminou de puxar o cristal para fora do peito do monstro, virou-se para o homem fazendo perguntas.
— Melhor cê esquecer isso aí.
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— Vinte e quatro de janeiro de mil novecentos e onze. Hora do óbito, doze horas e doze minutos.
Quando o Doutor Herzollen terminou de pronunciar as horas, procurou um papel para fazer a anotação do horário. Não tinha um documento específico para o atestado de óbito naquele momento, nem tinha tempo para se preocupar com tudo, mas registraria o mínimo antes de sair dali.
A enfermeira tinha um rosto abatido. Fazia tempo que trabalhava com o médico em seu consultório particular, bem longe das mortes recorrentes dentro dos grandes hospitais. A sensação de perder um paciente, ainda mais um tão jovem, nunca era agradável ou fácil de engolir.
O médico esticou o braço para puxar um dos poucos papéis secos, esbarrando os dedos em um pequeno objeto de vidro logo ao lado. Por instinto, encarou o item.
— Será que…
Com rapidez, pegou o artefato e trouxe para perto do rosto. O rótulo de papel estava meio apagado, mas ainda era possível ler claramente a palavra “Epinefrina”.
— Meu Deus! Marie, aqui estava o maldito frasco de Adrenalina!
— Mas, Doutor… — A enfermeira encarou a seringa nas mãos do médico. — Não está escrito isso.
O Doutor contraiu o rosto e sua tez envelhecida ficou completamente enrugada. Depois inspirou e expirou profundamente, se acalmando.
— Falha minha… Esse medicamento é chamado por mais de um nome. — O médico tirou a tampa da ponta da seringa, revelando a enorme agulha do objeto, e encarou o peito exposto do primogênito dos Guerra. Não havia movimento de respiração, não havia sinal de vida.
Sem condições de fazer qualquer outra coisa, o médico anunciou: — É possível que haja sequelas… Mas não temos outra opção. Cruze os dedos, agora é tudo ou nada!
Com um movimento vagaroso e preciso, perfurou, pouco a pouco, o peito de Lucas em um dos procedimentos mais perigosos de todos — uma injeção intracardíaca mirando o ventrículo esquerdo. Pressionou a ampola com calma e firmeza, injetando o conteúdo direto no coração.
O Doutor Herzollen sabia das várias complicações que poderiam vir com este procedimento. Os maiores problemas eram causar lesões nas artérias coronárias, hemorragia no pericárdio ou perfurar o pulmão. Se qualquer uma dessas coisas acontecesse naquela situação, Lucas não teria mais chances de ser ressuscitado.
Ambos encararam o rapaz em silêncio. Ouviam apenas os barulhos da chuva e do combate do lado de fora. O corpo pálido de Lucas continuava imóvel.
Taciturno, o velho médico comentou: — Essa é sempre a pior parte da profissão.