Guerra, o Legado no Sangue - Capítulo 22
A enfermeira de meia-idade, que se recusou a abandonar o médico, desabotoou a camisa de Lucas e expôs seu peito, uma marca de mão estava gravada na pele em uma ferida de cor roxa.
O doutor quase não acreditou naquilo. — Quanta força precisa pra deixar uma marca assim?
— O que fazemos agora?
— Marie, pegue algumas toalhas e tente cobrir o buraco na tenda, a chuva só vai nos atrapalhar.
O veterano se ajoelhou ao lado de Lucas e dobrou as mangas de sua camisa. — Irei começar a compressão no paciente. Que Deus nos ajude.
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Um pouco antes, na parte de trás da fileira de carroças, o grupo ainda lidava com alguns vampiros. Os passageiros observavam tudo com medo, com exceção de uma criança que torcia pelo grupo lutando.
— Vai, moço. Pega eles! — gritou para Aren, que balançava sua lança na direção de um trio de vampiros.
— Fica quieto — falou a mulher que estava com a criança. — Deixa eles se concentrarem.
Os três monstros que correram em direção ao grupo tiveram seus movimentos limitados pelo capoeirista, que usava o comprimento da lança a seu favor para bloquear os avanços.
Com os inimigos limitados, o fuzileiro disparou seu fuzil Kropatschek três vezes. As criaturas cessaram os ataques após os disparos, gemendo e rastejando em agonia na lama.
Após as feridas letais, Aren aproveitou para finalizar cada um deles com uma estocada de sua arma. Em poucos movimentos, mais nenhum ruído foi ouvido pelos monstros.
— Nem precisaram da minha ajuda — Sophia comentou. — Fiquei pegando chuva pra nada.
O marinheiro achava esse grupo muito estranho. O homem com a lança até era útil e a indígena tinha seu arco, mas o rapaz manco e a menina nem tinham armas. Não os viu fazer nada desde que chegou, então até pensou que o Oficial cometeu algum erro na papelada.
Do topo da carruagem, Anahí encarou o horizonte oculto pela chuva. — Tenho um sentimento ruim, tem alguma coisa lá.
O fuzileiro encarou o caminho por onde vieram, mas não viu nada. Os demais também não conseguiam distinguir qualquer coisa com aquele tempo ruim.
Enquanto Arthur tentava distinguir os vultos na mata, algo como uma descarga elétrica percorreu seu corpo da cabeça aos pés, aumentando o ritmo do coração. Seus sentidos se aguçaram e ele encarou o início da fila de carroças.
— Senti um calafrio agora… Uma sensação estranha. — Sophia tinha um olhar preocupado no rosto, enquanto apontava para a mesma direção. — Lá na frente, algo está errado.
O jovem com a bengala se voltou para a indígena e perguntou: — Consegue ver alguma coisa daí de cima?
— Só a carroça na frente.
Com a mão no peito, sentia um desconforto anormal. Ao olhar naquela direção, parecia que encarava uma caverna escura com restos mortais na entrada. Sabia que tinha algo perigoso lá.
— Preciso ir lá na frente ver o Lucas…
UUUUUUAAAARR.
O restante da frase foi impedida, quando um grito horrível irrompeu do final da estrada. Com o susto, o fuzileiro tremeu da cabeça aos pés. — Q-que merda é essa?!
— É agora que vai complicar — respondeu Aren, cravando a lança no chão para poder alongar todos os membros. — Proteger essa carroça não vai dar mais.
Apesar do marinheiro não saber o que estava por vir, notou que os voluntários não estavam mais com feições calmas como antes. Além disso, assim o homem negro comentou aquilo, a arqueira saltou para fora da carruagem.
Com a lança em mãos, o homem com os dreads gritou: — Desce todo mundo! Vão pra perto da próxima carroça.
Vendo isso, o marinheiro contestou: — Nossas ordens são de proteger as pessoas nas carroças! Qual seu direito de tirar todo mundo de dentro?
Sem paciência para explicar, apenas ignorou. — Aponta sua arma pra lá se quiser ficar vivo.
Notando que o militar ficou zangado, Sophia tentou acalmá-lo: — Assim que ocê ver o tamanho desse trem, vai entender.
Neste momento, Arthur ficou em um dilema. Mesmo que não fosse intencional, havia sido ele o grande responsável por derrubar aquela criatura enorme na luta do quilombo. Se fosse a mesma coisa que soltou o rugido de agora, precisariam dele.
— Vai lá conferir como tá o seu irmão. — Aren estava nervoso, mas ainda transparecia confiança em sua voz.
— Eu sinto que preciso estar lá agora mesmo, mas se sair daqui…
— Não se preocupa com isso. Com a loirinha aqui, acho que a gente se vira.
As pessoas ainda estavam deixando a carruagem, o medo estampado no rosto de todos eles. Concordaram em ajudar nessa viagem, então deveriam tentar fazer algo enquanto pudessem. E a única coisa que levava Arthur a sair dali era um pressentimento, nada palpável.
Vendo a indecisão do jovem, Anahí se aproximou. Com uma mão em seu ombro, falou: — Se o seu instinto diz que você precisa fazer algo, então faça.
— Já prometi ajudar essas pessoas, senão iria junto. — Aren encarou o menininho que ficou torcendo para ele durante a luta e depois parou para amarrar seus dreads, não queria eles bloqueando sua visão na luta que viria. — Agora vai logo!
Com isso dito, o jovem Guerra saiu correndo o mais rápido que pode pela estrada lamacenta. Acompanharam suas costas até que a chuva o fez desaparecer.
Sophia estava preocupada com Arthur e Lucas. Teve a mesma sensação, então sabia que não seria algo bom. Mas deixou de lado, neste momento tinha que focar naquilo que precisava fazer.
— Não sei se consigo segurar uma coisa tão grande… — Comentou a loira. — Acho que depende da força.
Aren refletiu sobre o que Sophia falou e deu sua opinião: — Se ficar mais devagar já deve servir.
— Cortamos as pernas e depois a cabeça — comentou Anahí.
— Daquela vez o bicho ficou de pé, precisamos pegar as patas de trás primeiro.
O fuzileiro apenas acompanhava em silêncio, sem entender do que estavam falando. Em seguida avistou um enorme vulto se movendo pela estrada na direção deles.
— Aquilo é uma carroça vindo? — perguntou o marinheiro.
Aren olhou para sua pulseira colorida e depois fechou os olhos por um instante. Sua boca se moveu levemente e sua voz saiu quase inaudível, não estava falando com ninguém ao redor dele.
—… Tendo pés não me alcancem, tendo mãos não me peguem, tendo olhos não me vejam, e nem em pensamentos eles possam me fazer mal.
Sophia encarou apressada a carroça atrás deles. Todos já tinham saído, mas os cavalos, que continuam presos na estrutura, se debatiam agitados.
— Tadinhos. A gente tinha que soltar eles dali.
— Acho que não vai dar tempo… — O capoeirista cuspiu no chão. — Já consigo sentir o fedor daqui.
Antes que o vulto que avançava na direção deles estivesse completamente distinguível, uma flecha cortou o ar, acertando a grande massa camuflada pela chuva.
UUUUUUAAAARR.
— Que porra é aquela?! — gritou o fuzileiro, assombrado com a confirmação de que aquilo não era uma carruagem.
— Começar a atirar na cabeça ou nos membros.
Mesmo com a falta de nitidez, o marinheiro não ficou esperando para ter uma mira melhor. Ainda havia um projétil na arma, então disparou bem no centro da criatura que vinha. O disparo ecoou e um gemido de dor veio da criatura.
O marujo puxou o ferrolho para trás e retirou a cápsula deflagrada. — Preciso de um minuto para recarregar, vou ter mais cinco disparos.
A carabina Kropastchek tinha espaço para quatro munições de 8 mm na câmara interna e mais uma no cano. No limite da arma, seria possível efetuar cinco disparos com relativa velocidade. Entretanto, essa arma não possuía clipes de munição, popularmente chamados de pentes.
Sem outra escolha, começou a inserir os projéteis, um por um, na arma. Fazia os movimentos o mais rápido possível, mas o pavor causado por aquela enorme sombra fazia suas mãos tremerem incessantemente.
Apesar do poder das armas de fogo ser maior no geral, o arco ainda detinha algumas vantagens sobre elas. Uma delas era o ritmo de disparos. Enquanto o fuzileiro recarregava sua arma, Anahí já havia disparado mais duas flechas depois da primeira.
A fera, por outro lado, continuou avançando e finalmente ficou perto o suficiente para que todos a enxergassem. Quatro pernas musculosas, uma boca larga com dentes afiados, pele cinzenta e um par de olhos negros compunham seus quase três metros de altura.
Quase idêntica àquela que atacou o quilombo, o grupo ficou com um misto de sentimentos. Apesar de ser um desafio considerável, ainda era melhor do que enfrentar uma coisa diferente pela primeira vez.
A garota loira levantou as mãos, mas Aren sinalizou para que parasse. — Ainda não, Sophia. Espera chegar mais perto.
Com mais uma flecha disparada por Anahí, a enorme criatura lembrava um pouco um porco-espinho. Mas não seria o suficiente para parar seus movimentos, precisavam de bem mais que isso.
O capoeirista tomou a dianteira, correndo para perto das árvores. O monstro avistou essa presa e mudou a direção do ataque, desviando da carroça e indo diretamente para o guerreiro isolado.
Quando o monstro gigante chegou perto o suficiente e tentou atacá-lo, Aren pulou para o espaço entre as maiores árvores. Devido ao tamanho, a criatura foi barrada pelos troncos e não conseguiu alcançá-lo.
Entretanto, o homem não estava apenas desviando. Com sua lança, fez uma estocada em direção a cabeça do monstro, rasgando a carne acima do olho esquerdo.
Dessa vez, quem aproveitou a oportunidade foi o marinheiro. Focado em outra pessoa e com aquele corpo enorme praticamente parado, seriam disparos garantidos.
— Abrindo fogo!
Com o grito do militar, o barulho da sequência de cinco disparos se misturou aos trovões no céu. Quando a barulheira finalmente cessou, a perna traseira da criatura estava uma bagunça sangrenta e repleta de buracos.
Sem conseguir alcançar o homem com a lança e sendo atacado do outro lado, a besta gigantesca voltou a focar o grupo diante da carroça. Seu avanço havia sido prejudicado pelo ferimento na perna traseira, mas seu ímpeto ainda era considerável.
— Preciso recarregar! — gritou o marinheiro.
Outra flecha voou, acertando o meio da cara do monstro, que parou por um instante para arrancá-la batendo contra o chão. No instante seguinte, uma lança cortou o tendão na outra perna traseira da fera.
— Cê não pode me ignorar assim, hein — gritou, saltando novamente para o espaço entre as árvores.
Sem conseguir colocar força nas pernas de trás, o monstro caiu com metade de seu corpo no chão.
O fuzileiro ainda estava concentrado municiando sua arma, mas não conseguiu evitar ficar impressionado. Só de estar olhando para aquela coisa, já lhe dava medo. Não conseguia imaginar quanta coragem era necessária para lutar de tão perto.
Porém, apesar de ferida, a criatura não estava morta. Com um urro, se ergueu novamente. Mancava com a perna atingida pelos disparos e arrastava a outra, mas ainda se movia.
Essa luta não terminaria tão fácil.
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O Doutor estava no limite de suas forças para continuar a massagem cardíaca, seu cabelo branco já estava completamente molhado pela chuva e suor.
— Marie, procure pela injeção de epinefrina! — falou, sem cessar os movimentos. — Ela deve estar em algum lugar dentro da minha maleta.
A enfermeira seguiu a ordem e começou a tirar tudo que havia dentro, em busca da tal injeção. Depois que todos os equipamentos e papéis estavam espalhados pelo interior da carruagem, a maleta já estava completamente vazia.
Com pesar na voz, a enfermeira avisou: — Doutor… não encontrei a Epinefrina dentro da mala. Revirei tudo, mas não está em lugar nenhum.
Já sem forças para continuar a compressão no peito de Lucas, o Doutor parou de mover seus braços. Respirando com dificuldade pelo esforço contínuo, o médico encarou seu relógio e falou com uma voz cansada: — Vinte e quatro de janeiro de mil novecentos e onze. Hora do óbito, doze horas e doze minutos.
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