Passos Arcanos - Capítulo 267
— Vocês deveriam estar cuidando de Keifor como cuidaram das Caldeiras – Orion disse para os Anciãos presentes. Sozinho dessa vez, ele não contava com nenhum dos seus tenentes ou comandantes, eram apenas os velhos homens sentados, esperando com olhares pesados. — Eu nunca deixei que faltasse dinheiro para as construções, nem mesmo que faltasse materiais. O que acham que estão fazendo colocando essas pessoas no meio de um frio sem dar a devida atenção aos que os dois Escolásticos disseram?
Lafel e Drieck eram os mais novos membros no meio da reunião, sentavam ao lado de Mestre Pice. Da última vez que se viram, Lafel ficou com receio. Orion tinha escapado de Magnus, depois de um plano mirabolante onde o Clero teria sua cabeça. E se afiliou ao Imperador Nero, se tornando uma Lança Externa.
Achava incrível o fato dele ter saído de um Selector para ter um lugar na mesa de um Império. Entretanto, os eventos se arrastaram rápido demais. Em quase três anos, as notícias que recebia quando estudava com seu mais novo mestre, o Selector Drieck, era de que Orion Baker tinha finalmente reerguido sua família, levando um pouco de glória ao derrotar quase cem membros do Círculo de Lumos. Também tinha um estranho rumor de que Orion e o Papa Oculto lutaram.
Vendo o braço enfaixado de Orion, a informação soava mais que um boato.
Agora, ele fazia Anciãos dos Baker, taxados por muitas outras famílias como insuportáveis, abaixarem suas cabeças em silêncio.
— Desde quando retornamos para o tempo que conversar se tornou difícil? Eram vocês lá fora no frio? — Orion fez uma pausa e ninguém respondeu. — Primeiro de tudo, quando eu estiver falando, não quero rostos de culpa. Fazem o que fazem aqui para sobrevivermos, mas não estamos mais tomando conta apenas dos nossos. Olhem pra mim, todos vocês.
Um por um por, eles ergueram a cabeça.
— Eles são filhos de alguém, são pais, irmãos. São como nós. Protegem quem eles podem, mas nós tomamos essa terra, somos nós quem fazemos tudo andar por aqui. Eles produzem para a gente, eles falam pela gente, eles são o nosso espelho. E qual o resultado disso? Vocês, aqui dentro dessa linda casa, construída por trabalhadores que estão lá fora, decidindo se um sistema de aquecimento modulado a fragmentos de minério, no qual não fazem nenhuma ideia do que faz seria viável economicamente, e como sei disso? Os relatórios estavam na minha mesa e ficaram até eu voltar.
Orion suspirou e fez uma pausa mais longa. Lafel viu os Anciãos com seus ombros tensos, alguns até mesmo seguravam a própria mão. Nas famílias mais tradicionais, isso seria dado como uma desavença.
A nova geração de uma família seguiria os passos da antiga. Assim foi como Lafel aprendeu quando esteve em casa. Por esse mesmo motivo, saiu de lá em direção ao seu sonho de se tornar um Escolástico renomado.
— Isso é o que gente comum faz – completou Orion, ainda tranquilo. — Quando passamos necessidades, os senhores lutaram para que suas famílias não fossem atingidas. Isso funcionou por algum tempo, mas outros mais humildes sofreram com a fome. Não deixem que isso aconteçam de novo, temos o suficiente para que cada um lá fora tenha 10 refeições, mas não seremos egoístas. Não vou punir ninguém porque pensaram com as experiências passadas, mas a relevância que cada um tem para aquelas pessoas é de que somos uma família diferente. Nossa vida inteira passamos a ser chamados de teimosos, de cruéis. O título ‘Cães Imortais’ não traz uma boa imagem. Para nossos inimigos, somos isso tudo. Para eles – Orion apontou para o vitral atrás de si – somos melhores. Sejam o pai, filho, irmão de cada um lá fora. Ouçam e conversem como iguais, e passem isso para os mais novos. Eu os trato assim, então sejam mais cordiais e humildes.
— Somos assim desde que nos consideramos gente, Mestre Baker – disse Ancião Ringo. — Tentar nos tornar diferentes seria…
— Imensamente complicado – respondeu Ancião Dest. — Nossa família inteira lutou para sermos egoísticas. Centenas de anos, Mestre Baker. Luna Delmorte Baker escreveu que nossa família jamais terá como sair desse ciclo de desastres. Trazemos isso para todos que estão ao nosso redor, é nossa cina. E para que nossos parentes não sejam lançados nesse mesmo mundo, tomamos os piores inimigos e jogamos essa praga neles.
Alguns concordaram. Luna Delmorte Baker foi uma filosofa de grande renome que trouxe um tempo de paz dentro da família. Era uma pacifista que acreditava na bondade que cada membro teria com seus semelhantes.
Lafel leu um dos seus livros quando era mais novo, mas nunca compreendeu o motivo das páginas serem tão arriscadas quando se diziam dos Baker. Conhecia as famílias nobres espalhadas pelo continente e dos podres que escondiam.
Ao invés de Luna se vangloriar pelos fatos dos Baker, ela se culpava.
— O ciclo de morte só acontece com os desejos que temos. — Orion respirou fundo. — Hoje não precisamos mais tomar terras a força. Não precisamos sangrar planícies inteiras. Do lado de fora, aquelas pessoas precisam de proteção, uma que ninguém mais as daria. Os senhores lutaram por anos, agora está na minha vez. Então, não sejam mesquinhos. Mudar leva tempo, e ter tempo é um pouco complicado. Os problemas sempre aparecem, mas eu vou resolvê-los. Estamos entendidos?
Assentiram juntos. Não havia remorso, culpa ou inveja da posição de Orion. Lafel viu como Orion lutava, se portava e como ordenava um campo de batalha. Era um guerreiro completo, muito acima da média. E ainda assim, falava com simplicidade aos homens que negligenciaram um projeto que englobaria uma cidade inteira.
— Drieck – Orion ainda se sentava com o rosto apoiado na mão e o cotovelo na perna. — Pode prosseguir com o projeto. Dez matrizes, como queria. O financiamento vai ser por nossa conta. E os projetos que estão em andamento, contatem o meu pai. Ele vai fazer questão de ajudar.
— Agradecemos pela sua atenção, Mestre Baker.
Lafel fez uma leve reverência com a cabeça para Orion e o viu sorrir de lado.
— Está gostando do clima frio do norte, meu amigo?
Pego de surpresa, os Anciãos viraram-se todos para Lafel.
— É… um pouco fora do meu habitual. — Não queria parecer desconfiante, mas engoliu em seco uma duas vezes antes de prosseguir. — As casas são todas muito bonitas. E tenho um quarto bem espaçoso.
— O escritório vai ficar pronto amanhã cedo. E poderá trabalhar com os antigos projetos do Professor que ele deixou antes de fazer sua viagem. — Orion olhou para Parvos Baker, um dos mensageiros. — Peça para levarem os projetos para lá.
— Sim, senhor.
Lafel viu os Anciãos ergueram a mão. Dois deles queriam participar das leituras das runas, e outros para fazer a reconstrução de alguns papiros junto de Poulius Qujas. Os Baker realmente tinham um gosto soberano pelo Arcanismo Comum.
— Eles são ainda piores do que eu – sussurrou Drieck, brincando. — O Arcanismo te seduz a esse ponto.
Quando a reunião se encerrou, Lafel esperava que Orion saíssem com alguns dos Anciãos. No entanto, ele foi o último a sair, e o chamou para caminhar. Lado a lado, passaram por corredores, salas e chegaram a um jardim grande o suficiente para abrigar mais de trinta tipos de flores.
Era uma encruzilhada de cores, de odores, de uma tinta viva carregada de brilho.
Orion se sentou ali mesmo na beirada e Lafel o acompanhou. O silêncio nunca tinha sido constrangedor. Por quase duas semanas ficaram no Oceano Negro, ali Lafel aprendeu que o silêncio se tornava confortável quando se estava próximo de pessoas que confiavam.
— Ser um Mestre deve ser um pouco pesado – Lafel disse. — Tanta coisa pra gerenciar ao mesmo tempo. Tanta gente.
— Com o tempo, eu me acostumei. — Ele ainda olhava para o jardim. — Sabe o que mais gosto dessa cidade? É o tempo.
— Gosta de sentir frio? — As roupas que Lafel usavam ali ultrapassavam o costume nas Terras Fluviais. — Eu prefiro um pouco de calor de vez em quando.
— Não, não. — Orion deu uma risada. — É que está sempre nublado. Mais tranquilo. Nas Caldeiras de Ilhotas, estava sempre dando sol, mas sempre era um inferno. Quando eu disse aquelas palavras para os Anciãos, de que não precisavam mais suja uma planície de sangue, eu estava certo. Eles não precisam, mas eu sim.
Lafel virou-se e viu o rosto passivo fitando o jardim.
— Daqui a dois dias, eu vou receber pessoas muito importantes. São possíveis famílias que vivem em lugares mais distantes. Nas Ilhas Vulcânicas, nos Trópicos Oeste. Nas Cordilheiras Sacren. E em VilaVelha. Cinco famílias simples terão a chance de suas vidas.
— E por que não parece estar animado? Seu discurso hoje foi muito comovente. As pessoas aqui se ajudam. Uma chance de se terem dignidade. Você me ajudou quando os Selectores não me queriam. Hoje sou aluno de um dos maiores Escolásticos que já conheci. Ajudar as pessoas, independente do preço, você é assim, Orion Baker.
Quando mais de trinta pessoas passaram pelos portões de ferro e adentraram o jardim, os acenos se tornaram constantes. A cidade nunca teve um jardim tão grande, e as crianças andavam para lá e para cá, entre os caminhos. As esposas e maridos, os bebês em seus colos, os idosos em casal, partilhando de um momento íntimo.
Tudo isso fazia com que as palavras de Orion valessem a pena. Havia aqueles que não o conheciam, mas se tornavam sorridentes por poderem correr por ali. Em menos de um ano, aqueles rostos poderiam estar tendo um dos piores anos de suas vidas.
Lafel ainda não entendia como tudo se arrastou aquele ponto, mas Orion não parecia satisfeito.
— Quando se tem muito a proteger, deve estar esperando por todo tipo de problema.
— E que tipo de problemas seria?
Um mensageiro apareceu apressado por um dos portões laterais. Parou ao lado de Orion e respirou pesadamente.
— Senhor, a Ordem dos Magos liberou todos os Baker que estavam nas trincheiras. Estão chegando, são os dois mil que partiram naquele dia.
Lafel viu o mensageiro ir e Orion levantar. Sua expressão mudou, era a mesma quando estava pronto para lutar. A concentração e foco, o medo e o anseio. Lafel tinha visto vezes demais para se esquecer.
— Esse é o problema. — Seus braços foram guiados para trás das costas e seus pés pareceram deslocar do chão. Lafel nunca tinha visto, mas ouviu falar que Orion podia flutuar. — Os mais próximos da gente.